Fim de semana assistindo Tarantino e Lars Von Trier


Fim de semana assistindo Tarantino e Lars Von Trier


Certo final de semana, assisti a dois filmes: “Anticristo”, do dinamarquês Lars Von Trier, e “Bastardos Inglórios”, do norte-americano Quentin Tarantino. Os dois filmes foram lançados mais ou menos na mesma época. São filmes de diretores de estilos completamente diferentes, mas contemporâneos. De Lars Von Trier são, entre outros, “Ondas do destino”, “Dançando no Escuro”, “Dogville” e “Manderlay”. A Tarantino devem-se “Cães de Aluguel”, “Pulp Fiction”, “Jackie Brown” e “Kill Bill”.

Fato comum entre os dois é considerarem a si mesmos grandes cineastas, incomparáveis, ainda que declarações próprias ou de marketing tenham ou não essa real intenção. Quando de seu lançamento, “Kill Bill” foi alardeado como “o quarto filme de Quentin Tarantino”. Seria uma comparação ao genial Fellini e sua obra, que tem como um dos principais marcos “Fellini 8 ½” – que foi o oitavo filme da carreira do diretor italiano, contando-se um curta metragem que vale por meio? Ousou Tarantino, ou a produtora-distribuidora de “Kill Bill”, compará-lo a um dos grandes diretores de cinema, a ponto de numerar sua filmografia? Os filmes de Tarantino valem como a marca “Fellini”?

Já Lars Von Trier, no lançamento de “Anticristo” em Cannes, alardeou ser o melhor diretor do mundo, disse que fez o filme com apenas 50% de sua capacidade cerebral, sendo ele produzido durante uma fase sua de depressão ou pós-depressão. Ele foi direto, mas há dúvidas quanto à ironia despejada em sua declaração, tão excêntrico o diretor dinamarquês seja (ou talvez estivesse vivendo um momento de êxtase pós-depressivo). Não soou como James Cameron, que recebendo onze Oscar numa noite por “Titanic”, vangloriou-se bradando: “I’m the king of the world!”

As semelhanças param por aí. “Bastardos Inglórios” tem todos os elementos de seu roteirista-diretor: diálogos longos, envolventes e circundantes, que somente depois atingem seu clímax; uso a todo instante de referências cinematográficas, como forma de homenagear a sétima arte e a ela declarar sua paixão; cenas não contínuas, dividindo assim o filme em capítulos. No mais, o diretor mudou o cenário habitual de seus filmes: ao invés de tratar de assaltantes-gângsteres-matadores-de-aluguel, em tempo e espaço não tão relevantes, utilizou a invasão da França pelas tropas de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, como pano de fundo. O resultado soa um tanto distoante, como se alguma coisa estivesse fora do lugar, sem combinar. Ótimo em criar personagens e lhes dar memoráveis discursos, promover impagáveis diálogos, dessa vez Tarantino parece ter acertado apenas com o Cel. nazista Hans Landa (Christopher Waltz), o “caçador de judeus” – e em menor escala com a atriz alemã agindo contra Hitler, vivida pela bela Diane Kruger. A maioria do elenco parece perdida entre a misce-a-scène e homenagem ao cinema típicas do diretor, com a necessidade de incluir personagens naquele tempo e lugar. Tirando as duas exceções, os personagens soam toscos, o retrato histórico é tosco bem como as interpretações, pois seu “estilo” de escrever e filmar não combinou com a Segunda Guerra. Há um desalinho na história da resistência pouco ortodoxa de alguns franceses à invasão de seu país pela Alemanha. Quentin Tarantino pouco acrescentou à Segunda Guerra, cinematograficamente falando. Se alguém deu uma abordagem bem diferente do conflito, recentemente, esse foi Roberto Benigni, com “A Vida é Bela” (o filme que “roubou” o Oscar de “Central do Brasil”). Há ainda “A Queda! – As Últimas Horas de Hitler” e “Uma Mulher Contra Hitler”. No fim das contas, do “sexto filme de Quentin Tarantino” poderíamos esperar mais – notadamente da conclusão.

Lars Von Trier faz filmes violentos também, mas não como o colega. A violência não é explícita, mas visceral, vem das sensações que provocam na platéia a partir de histórias fortes de sofrimento, dor, abnegação, repulsa. Em “Anticristo” o diretor ousou mais que em qualquer outro de seus filmes. Conta a história de um casal que tenta lidar com a morte do filho pequeno. Tal como “Dançando no Escuro” ou “Dogville”, o que importa não é a história em si, mas até onde o diretor consegue levá-la e a maneira como conduz. Dê o mesmo roteiro a Lars Von Trier e a Steven Spielberg (o diretor-família queridinho de Hollywood): os resultados serão díspares. O primeiro é ousado; o outro, conservador.

“Anticristo” também é dividido em capítulos. A parte inicial é lindamente filmada, plástica e emocionalmente raríssima de se ver, ainda com toda sua ousadia. A câmera lenta, o sexo quase explícito, a trilha sonora sacra... Lembra, em parte, a cena de sexo do filme “Inverno de Sangue em Veneza”, dirigido no começo dos anos 70 por Nicholas Roeg.

A partir da morte do filho pequeno, num acidente, o casal vivido por Willem Dafoe e Charllote Gainsbourg muda-se para uma casa de campo na floresta, chamada de “Éden”. O marido, psicanalista, quer ajudar a esposa a lidar com a perda, para isso usando seus conhecimentos profissionais. Cada um lida de maneira distinta com a perda e, principalmente, com a culpa: o homem – racionalmente – e a mulher – irracionalmente? Passional demais? Contraditória? Não há como contar sobre o que acontece no filme sem estragar. O filme é todo carregado de simbolismos: não o entenda ao pé-da-letra. Tal como “Je Vous Salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, “Anticristo” seria censurado no Brasil se lançado durante aquela época, da ditadura. Ambos os diretores são corajosos para expor seus pensamentos e a coragem e despudor são incompatíveis com regimes de exceção. Para expor o que pretende, Lars Von Trier utiliza mais a Simbologia e Psicanálise-psicologia, e Godard carrega na Filosofia. Esses dois são exemplos de filmes para ver e rever e, a cada nova leitura, captar novos e diferentes elementos. Definitivamente, “Anticristo” é mais uma obra-prima do Sr. Von Trier; um filme diferente do que o mercado tem a oferecer – ainda que Cannes o tenha recepcionado com vaias.

Cotação:
Bastardos Inglórios: ê (regular)
Anticristo: êêêê  (excelente)

São Luís, 02 de março de 2010.

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