Crítica de filme: Cidade de Deus
Cidade
de Deus. Brasil,
2002. De: Fernando Meirelles. Co-direção:
Kátia Lund. Com Alexandre Rodrigues, Leandro
Firmino e Matheus Nachtergaele. O filme conta a saga de traficantes do conjunto
Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.
Bem ao lado da gente OU Tão longe,
tão perto
A
situação de violência urbana por que o país passa atualmente torna ainda mais
oportuno o lançamento de "Cidade de Deus". Mas, como veremos, este
filme incita discussões não só quanto ao seu conteúdo, como também quanto à
parte técnica.
Baseado
no romance de Paulo Lins, o filme acompanha a história da favela homônima,
construída na década de 60 do século XX com o objetivo de dar "moradia
decente" às pessoas que perderam seus barracos em desabamentos ou em
outras tragédias, como a expulsão da zona sul do Rio de Janeiro. Com isso,
"Cidade de Deus" acompanha a saga de parte dos moradores do conjunto
habitacional, de meados dos anos 60 até o início dos anos 80, marcados pela
infância desprotegida, até o clímax de guerra civil criado pelas gangues de
adolescentes.
A
direção de Fernando Meirelles é ágil e precisa ao nos apresentar os personagens
tão cruéis quanto a favela. Os cortes são rápidos e certeiros. O roteiro, a
montagem e toda a estrutura narrativa do filme utilizam a ironia para amenizar
o impacto da violência da favela ante o espectador. A violência não é leve nem
sutil. Não é fácil ver crianças de oito anos pegando armas e sendo mortas a
sangue frio por traficantes, porque assaltaram padaria sob proteção da gangue
rival. Você sente tanto terror quanto elas. É o mesmo que estar na favela
olhando tudo, mas tomando cuidado pra não ser atingido por uma bala perdida.
Por isso é que os truques de edição e montagem, artifícios muito usados em vídeo,
se destacam no filme. Eles fornecem um pouco de surrealidade e alegoria às
situações pesadas que acontecem.
O
destino dos personagens da Cidade de Deus é visto com naturalidade, sem os
clichês cheios de indignação e revolta. Sobra a cada espectador apurar o lado
crítico e sensitivo.
Grande
mérito do roteiro são os diálogos. Um personagem chega a dizer que, em certa
época, na Cidade de Deus, a situação era boa, quase não tinha assaltos e
assassinatos, porque os traficantes garantiam paz e estabilidade. Parece uma
ótima tirada. Mas, na verdade, a frase é uma expressão que retrata as coisas como
acontecem, tal como o são. Um pirralho chega a dizer: "Meu irmão, eu fumo,
eu cheiro, já roubei, já matei (...) não sou criança não. Sou sujeito
homem". Crianças tendo essa visão da vida é um soco no estômago. O mesmo
transparece no chefão do tráfico, Zé Pequeno, indivíduo cruel, feio, que mete
medo e nem parece gente.
A
linha entre a moralidade e a loucura da favela é muito tênue. Não é à-toa que
seus moradores sejam vistos com desconfiança, como marginais. Além do mais,
quase todos os moradores da Cidade de Deus são negros, e o único branco é
aquele bacana, filho de classe média que vai à favela comprar drogas. E aí
entra o filme a questão do preconceito racial. Na Cidade de Deus a ascensão
social é quase impossível e tentativas de "largar dessa vida"
resultam decepcionantes.
O
Estado é uma instituição à margem da favela, e é aí que entra o "poder
paralelo" dos traficantes. O contato dessa gente com o Estado (quando se
dá) é com a polícia armada até os dentes. A espera pela ação oficial é nula e
quando o governo se faz presente, quase sempre é com distintivo e camburão.
O
assassinato do jornalista Tim Lopes, o banquete mortal promovido por
Fernandinho Beira-mar em Bangu I, com seis baixas, entre elas o traficante
rival Uê, a caçada a Elias Maluco, a chacina da Candelária são fatos tão
recentes que tornam o filme retrato de um país medonho. Cidade de Deus é
extremamente real, principalmente quando a mídia aponta 45 mil pessoas
assassinadas ao ano, números só apurados em guerra civil.
Essa
parece ser a imagem perfeita para o cinema brasileiro explorar a
"brasilidade": a intensa violência urbana e o crescimento da
criminalidade nos grandes centros urbanos. Ao contrário, o cinema iraniano
aproveita o filão, de outra forma, explorando o choque cultural entre a
civilização ocidental e a muçulmana. Tais desavenças deram no que deram (11 de
setembro). Seria Zé Pequeno o nosso personagem fictício do Bin Laden real? Ou
ambos são sintomas representativos de que algo em suas sociedades não está bem,
e precisa ser repensado?
O
que nós conhecemos das favelas é o que lemos no jornal, revistas e vemos na
televisão. Não é a realidade, e sim uma vaga representação do que acontece de
verdade. "Cidade de Deus", contundentemente, nos aproxima da
realidade "deles". Aquela para a qual a maior parte da população vira
o rosto e fica pouco se incomoda se a vida dessas pessoas é difícil e crua. Bem
distante da nossa poltrona da sala de jantar e da poltrona do cinema. Até
porque elas não moram perto da gente e nem vão ao cinema.
Texto
escrito em setembro de 2002, com colaboração do Jornalista Antônio Nelson Silva
de Faria.
Cotação:
êêêê (excelente)
Já
são 13 anos desde que este texto foi escrito. Por conta desse longo
interstício, cabem umas observações:
1)
"Cidade de Deus" foi indicado a 4 Oscar em 2004: Melhor Direção,
Roteiro Adaptado, Fotografia e Montagem;
2)
No IMDB, "Cidade de Deus" mantém, em julho de 2015, a 21ª melhor nota
entre os filmes, com média de 8,6;
3)
Fernando Meirelles seguiu boa carreira mundo afora, dirigindo "O
Jardineiro Fiel" e "Ensaio Sobre a Cegueira";
4)
A criminalidade no Brasil nesses 13 anos aumentou ainda mais, e são incontáveis
os casos de chacina e massacre de inocentes;
5)
No Maranhão o número de homicídios com arma de fogo subiu de 286 para 1.235, de
2002 a 2012. Vergonhoso. A cidade de São Luís, outrora pacífica, lidera esse
incremento. Não apenas os homicídios cresceram, mas roubos, latrocínios e
tráfico de drogas. Vê-se, ainda, o caos total no qual o presídio de Pedrinhas
foi deixado pela governadora Roseana Sarney;
6)
Por tudo isso, esse texto - e o filme - permanecem atualíssimos;
6 comentários
Excelente texto. Apesar do tempo, a crítica continua atualíssima.
ResponderExcluirmuito bom o texto, parabéns !!!!!!!
ResponderExcluirmuito bom o texto, parabéns !!!!!!!
ResponderExcluirmuito bom o texto, parabéns !!!!!!!
ResponderExcluirObrigado a vocês, é bom saber que textos assim, além de entreter, servem para refletir um pouco sobre nossa sociedade.
ResponderExcluirSegue ainda como um vaticínio, tudo ainda é muito atual, apesar do tempo já passado.
ResponderExcluirUm texto de excelência.