O filme "Ligações Perigosas" (1988) e o Antigo Regime
Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons). EUA/Reino Unido, 1988. De Stephen Frears. Com Glenn Close, John Malkovich, Michelle
Pfeiffer e Swoosie Kurtz.
De início,
temos que o filme "Ligações Perigosas" (Dangerous Liaisons) foi feito
em 1988 — ou seja, num contexto com as comemorações dos 200 anos da Revolução
Francesa. O próprio enredo do filme se passa em 1788, isto é, 1 ano antes da
tomada da bastilha.
O filme do
diretor Stephen Frears baseia-se no romance de mesmo nome, de Choderlos de
Laclos, escrito em 1782. O romance é todo escrito em formas de cartas trocadas
entre os personagens principais. São 175 no total.
Cumpre falarmos
da importância do filme para um entendimento do Antigo Regime, bem como da
sociedade de corte que ruiu com a Revolução de 1789, tendo por base Ladurie e
Norbert Elias.
Os
personagens principais do filme são todos nobres franceses — marqueses, viscondes,
etc. (a Marquesa de Merteuil e o Visconde Sebastién de Valmont são os
principais). Trata-se de uma nobreza cortesã, que gravita em torno do rei. Os
personagens estão sempre estabelecidos em Paris ou Versalhes, indo ou voltando
de lá. Como afirma Ladurie, "Na França, mas também na Espanha e em Viena,
a Corte erige-se em lugar geométrico das hierarquias. Elas sustentam o sistema
monárquico ou são subtendidas por ele" (1987, pág. 15). Embora em nenhum momento
do filme apareça ou se faça referência ao Rei Luís XVI, temos que é impossível
ligar o que se passa no filme com seu centro de gravidade — o rei e sua corte. Afinal, a corte funcionava dessa maneira:
"Na França, Luís XIV prende a si os grandes senhores e os torna
dóceis por uma outorga de pensões que implica a residência em Versalhes, em
tempo parcial pelo menos. Sistema caro, mas rentável em termos de paz interna
do reino (...) Elas os unem a seus amigos, a seus vassalos e arrendatários, aos
camponeses de que são os senhores. A Corte se superpõe a todas essas tramas,
como princípio dominante e central" (1987, pág. 14-15).
A sustentação de uma corte, tida como local
privilegiado do monarca, é cara. Aos cortesãos e cortesãs são concedidos ou
vendidos cargos e arrendamentos, como forma do monarca angariar apoio da
nobreza e controlá-la, e também controlar os camponeses e o país como um todo.
Nota-se no filme o privilégio pela imponência e luxo das residências dos
personagens, bem como pelas suas roupas, pelos muitos criados, além de outros
pontos. Não devemos esquecer a concessão de pensões. Ladurie cita o aumento do
número de cargos na França em mais de dez vezes, entre os anos de 1515 e 1665
(1987, pág. 27).
Todo esse
luxo custava muito aos cofres do Estado. Mas era um preço que o rei estava
disposto a pagar e do qual não abria mão. Corroborando isso, temos os tributos
cada vez mais altos que recaíam sobre o terceiro estado francês — a burguesia, os camponeses, classes trabalhadoras urbanas, isto é,
todos aqueles que não eram nobres ou membros do clero e tinham que pagar
tributos. Tais tensões e insatisfações populares iriam desembocar na Revolução
Francesa, como sabemos.
"Ligações
Perigosas" não evoca essas tensões que estavam prestes a desembocar, mas
dá uma idéia: o modo como os cortesãos tratam seus criados e lhes ordenam sinaliza
o abismo que havia entre eles, não só em termos econômico e de prestígio, mas
jurídico. Os criados são obrigados pelos cortesãos a fazer seu "serviço
sujo" — como roubar cartas, sob pena de serem castigados ou difamados, por sua
inferioridade na pirâmide social.
Em
determinado momento do filme, por exemplo, o Visconde de Valmónt, para
impressionar Madame Marie de Tourvel, paga a dívida de uma pobre família de
camponeses, que estava tendo seus bens confiscados. O Visconde inclusive diz
que custou bem pouco impressionar a Madame, gastando umas poucas moedas. Isso
dá idéia da riqueza do Visconde em contraste com a miséria dos camponeses.
Ser cortesão
não implicava em trabalhar, mas em ter tempo livre para utilizá-lo em jogos
amorosos. São uma forma de distração numa sociedade de aparências, frívola,
enfim, privilegiada. Logo no início do filme temos os muitos criados da
Marquesa e do Visconde arrumando-os depois que acordam. Vestem a marquesa,
colocam seu espartilho, ajudam-na com o a maquiagem, etc. O visconde é vestido
com todos os detalhes que o figurino requer, é perfumado, tem os pêlos de seu
nariz arrancados, etc.
Para Norbert
Elias, a corte pode ser definida não apenas como um lugar, mas como uma
sociedade. Complementando, algo fechado em si mesmo, que não via nada de fora,
que não via a pobreza que lhes sustentava ou então enxergava seus privilégios
como algo natural.
A corte,
seria, assim, uma extensão da casa do rei. Os trajes, os atos, os diálogos e
comportamentos cortesãos em público eram sujeitos à regra da etiqueta. Havia a
forma correta de sentar-se numa refeição, utilizar os talheres, cumprimentar-se
alguém de acordo com seu título de nobreza — "status".
Nota-se a todo momento, no filme, o cuidado dos personagens em público, bem
como a dissimulação. Porém, entre quatro paredes, na intimidade, nas cartas,
vemos uma rede de intrigas muito vinculada a sexo e destruição de reputações.
Nobres não
deviam escarrar em público, estar maltrapilhos, pois se o fizessem seria como
se a sociedade assim estivesse vendo o monarca. Uma monarquia vigorosa gera uma
corte luxuosa; uma monarquia decadente, uma corte decadente. Isso, em se
tratando de aparências.
Assim, o que
conta, nessa sociedade, é a aparência: é uma sociedade de aparências a cortesã,
uma sociedade visual. Destruir a reputação de alguém, retirar-lhe as máscaras
perante a sociedade parece uma vingança perfeita.
Por fim, na
"alta sociedade" do Antigo Regime, o casamento servia principalmente não
como afeto, mas como negócio, como forma de ter acesso a arrendamentos, cargos
e pensões, bem como a títulos, como também é possível notarmos a partir do
filme. Da mesma maneira se davam os casamentos reais: para preservar a linhagem
e os arranjos políticos, casava-se, inclusive, parentes próximos.
Depreende-se
a qualidade do filme ao retratar essa sociedade de corte, que teve seu ápice na
França, mas também existiu em outros lugares, como em Madri e em Viena, e no
distante Japão - claro, nesse último caso, adaptada aos costumes locais. Filme
bem feito visualmente, bem interpretado e capaz de dar uma boa visão de como
era aquele estrato social no Antigo Regime.
Mathias Nelson Faria dos Reis
Bibliografia
consultada
LADURIE, Emmanuel Le Roy. O
Estado Monárquico, França, 1460-1610. São Paulo: Companhia das Letras,
1994. págs. 7-38.
ELIAS,
Norbert. A sociedade de corte:
investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001. págs. 61-131
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