Crítica de filme - O SENHOR DOS ANÉIS - A SOCIEDADE DO ANEL

O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring)
Estados Unidos/Nova Zelândia, 2001. Direção: Peter Jackson. Com Elijah Wood, Ian Mckellen e Viggo Mortensen. 178 min. Na Terra-Média, o hobbit Frodo recebe de seu tio Bilbo Bolseiro anel maligno que deve ser destruído.


Cotação: êê (Bom)


Ao longo dos anos 40/50, o inglês J. R. R. Tolkien escreveu a trilogia “O Senhor dos Anéis”, uma obra monumental e originalíssima para sua época: criando um mundo fantástico, um planeta Terra que não existe mais no qual convivem anões, elfos, orcs, humanos e várias outras raças, Tolkien foi um visionário e influenciou tudo sobre o tema que surgiu posteriormente, de jogos de RPG´s a Guerra nas Estrelas, do desenho animado Caverna do Dragão ao filme Dungeons & Dragons, e muito mais... Aliás, foi com Tolkien e sua primeira grande obra, “O Hobbit”, na qual ele já traçava os contornos de “O Senhor dos Anéis”, que começaram a surgir os jogos de RPG´s, que, se não são tão conhecidos no Brasil como em outros países, popularizaram-se nos Estados Unidos com o decorrer dos anos 70 e hoje reúnem milhões de adeptos. RPG significa Rolle Playing Game, ou “Jogo de Representação de Papéis”, consistindo mais ou menos no seguinte: cada jogador assume o papel de um herói,  dotado de características próprias que, num mundo imaginário, tem de cumprir missões e para isso enfrentar monstros, resgatar pessoas e encontrar tesouros, entre muitas outras coisas... obviamente, cada herói tem habilidades e armas, mas quem decide tudo o que ele faz, quem o interpreta, é o jogador... enfim, são como um filme, no qual os jogadores são os atores e o chamado Mestre do Jogo, o Diretor: é ele quem “conhece” o roteiro, e coloca a situação com que os heróis irão se defrontar. Pois então, é “O Senhor dos Anéis” precursor dessa modalidade de jogos em que o principal resultado é a criação de todo um perfil e um histórico de cada personagem e a delineação das características dos lugares onde transcorrem as ações. Nada mais claro em “O Senhor dos Anéis” que essas duas coisas.

Por isso, com a explosão dos RPG´s nas décadas de 80 e 90, e o sucesso desenho animado Caverna do Dragão (um autêntico jogo RPG), Tolkien e sua literatura estão atualíssimos: difícil acreditar que o autor nasceu ainda no século retrasado (1892), e que suas publicações sobre a Terra-Média e seus habitantes tenham se iniciado na década de 30. Tolkien era um homem muito à frente de seu tempo, e essa é uma das principais características dos gênios da humanidade.

“O Senhor dos Anéis” é um épico obra colossal em todos os sentidos, de mais ou menos 1800 páginas, nas quais Tolkien traça toda a estrutura da Terra-Média, contando as gerações de reis e nobres e ilustrando seus escritos com mapas. Mesmo que o resultado de votações pela internet sejam mais que contestáveis (veja-se o exemplo de uma recente pesquisa na qual Michael Jordan venceu Pelé como atleta do século), não foi à-toa que “O Senhor dos Anéis” foi eleito “O Livro do Século” pelos internautas. De qualquer maneira, indiscutivelmente “O Senhor dos Anéis”  é uma obra-prima da literatura, por sua imaginação, antecipação e densidade.

A grande importância do livro, a que já nos referimos, juntamente com um elenco estelar, um diretor que já mostrou serviço, 300 milhões de dólares e a promessa de muitos efeitos especiais fizeram de “O Senhor dos Anéis” o grande lançamento dos últimos tempos e também, uma das grandes promessas. Na verdade, já era tempo de “O Senhor dos Anéis” ganhar uma adaptação para o cinema. Existe, porém, uma adaptação anterior, um desenho animado, de meados da década de 70, mas ele é bastante obscuro.

Vamos à história: “O Senhor dos Anéis” passa-se na Terra-Média e começa quando Bilbo Bolseiro (Ian Holm, perfeito no papel), um hobbit (seres parecidos com pessoas, mas de estatura mais baixa e atarracados), ganha numa aposta com a criatura Gollum o chamado Um Anel. Este, descobre-se, é um anel maligno que é a encarnação do inimigo Sauron que, gerações e gerações passadas, o forjou  para “a todos dominar”, usando do seguinte plano: forjou vários anéis, entregando três para líderes elfos, sete para os anões, e nove para os humanos. O truque usado por Sauron foi justamente forjar para si o chamado Um Anel, que tem o poder de controlar os demais, além de dar a quem o usa grande poder (inclusive vida longa e o poder de tornar invisível), poder esse que, porém, traz um custo ao portador: sua alma. Com o plano feito, Sauron deflagrou uma grande guerra, mas, depois de muitas baixas, foi derrotado, sem que, porém, o Um Anel viesse a ser destruído: o rei humano Isildur recusou-se a destruí-lo, preferindo guardá-lo consigo, até que, após ser morto numa emboscada, o Um Anel tenha se perdido por longo tempo, até ser encontrado por Gollum e ter enfim passado para as mãos de Bilbo Bolseiro, morador do Condado, região isolada onde vive a pacífica raça dos hobbits.

Bilbo é grande amigo do poderoso mago Gandalf (Ian Mckellen), membro de uma ordem chefiada pelo mago Saruman, o Branco (Christopher Lee, mais que perfeito no papel). Gandalf logo alerta Bilbo que seu anel não é um qualquer, e sim o Um Anel da velha história passada geração após geração. O problema é que o poder de Sauron parece ter renascido na distante Mordor, e ele está disposto a tudo para recuperar seu Um Anel. Bilbo, consumido por anos carregando o anel, decide junto com Gandalf transmiti-lo a seu sobrinho e herdeiro, Frodo Bolseiro (Elijah Wood), mas já é tarde demais: as tropas de Mordor já se encontram no Condado atrás do Um Anel.

São ainda hobbits os amigos de Frodo Sam Gamgi, Pipin e Merin. Completam os “mocinhos” Aragorn (Viggo Mortensen), amigo de Gandalf e herdeiro do trono de Isildur, Gimli, filho de Glóin, representante da raça dos anões, Legolas, representante dos elfos, e Boromir (Sean Bean, surpreendentemente ótimo no papel), da fortaleza humana de Minas Tirith.

Já em cima da hora, devemos ressaltar que o livro “O Senhor dos Anéis” consiste numa trilogia, que tem início com “A Sociedade do Anel”, prossegue com “As Duas Torres” e encerra-se com “O Retorno do Rei”. O primeiro filme é justamente “A Sociedade do Anel”, sendo que os dois seguintes têm lançamento previsto para o Natal de 2002 e 2003. Cada filme, pois, corresponde a um volume.

O roteiro do filme foi bastante fiel ao livro. Foram feitas duas alterações para tornar o livro um pouquinho mais atual, a meu ver totalmente desnecessárias: digamos que uma atualização feminista (maior papel dado à guerreira Arwen) e outra biogenética (a mistura de genes com a criação de poderosos bichos metade humanos, metade orcs). Tiveram, sim, outras alterações, sendo a principal a supressão do personagem do fazendeiro Tom Bombadil, sendo as demais alterações apenas detalhes. Todos os passos da saga foram seguidos cronologicamente pelo roteiro.

Reside justamente aí um dos grandes problemas do filme. O livro de Tolkien é riquíssimo em detalhes, e sua escrita bastante tranqüila, de maneira que a leitura vai fluindo facilmente de uma passagem a outra da história. Passa-se do Condado a Bri, de Bri ao Topo do Vento, deste a Valfenda, e por aí vai, tudo de maneira agradável de se ler. Quando essas passagens foram transpostas para a telona, resultaram em seqüências que vão ficando um pouco longas e cansativas. O diretor/roteirista Peter Jackson não deu maior ênfase a nenhuma passagem. Limitou-se apenas a “pintar” o que existe no livro, ou “fotografar”, ou mais claramente, quase todo o tempo de projeção é gasto para mostrar-nos uma direção de arte competente e excelentes efeitos especiais para mostrar às pessoas o universo de pessoas, lugares e acontecimentos imaginado por Tolkien em seus escritos. Faltou ousadia na adaptação, justamente uma das coisas que os realizadores mais prometiam ao público. Por isso, o filme tem partes arrastadas, burocráticas até, carecendo ainda  de consistência em vários momentos, como, por exemplo, para a personagem de Cate Blanchett Galadriel, Rainha dos Elfos. Cate Blanchett está incrivelmente perdida, assim como sua personagem. Por que não dar maior ênfase ao conselho em Valfenda, ou ao “achamento” do anel por Bilbo, ao invés de mostrar perseguições de cavaleiros e descidas de escadas e mais escadas  nas minas perdidas de Moria, ou ainda Gandalf olhando longo tempo para uma borboleta que se transformará num Griffon? Que se encurtasse certos momentos, como a saída do condado, e privilegiasse outros, e se fizesse cortes mais rápidos... “Ben-Hur”, por exemplo, tem seu clímax na corrida de bigas... já em “O Senhor dos Anéis”  é difícil encontrarmos um. Literatura é literatura, cinema é cinema, é esse senso que parece ter faltado a Peter Jackson. A imensa riqueza de detalhes do livro simplesmente não pode ser passada para a tela sem que o filme seja longo demais (longo, nesse sentido, quer dizer bem mais que três horas). Só uma minissérie, ou uma novela, para retratar um único volume do épico em todos os seus detalhes. E foi justamente aí que a direção e o roteiro mais erraram: não privilegiaram nenhum momento, não foi dada maior consistência, maior impacto. Não é para tanto que o filme não surpreende os espectadores uma única vez. Poderia ter sido modificado o roteiro para suprir essas carências sem que ainda assim se retirasse a alma do universo de Tolkien. A impressão que fica é que boa parte da projeção foi gasta para mostrar paisagens e perseguições da Terra-Média criadas em parte por efeitos visuais, e ainda houve abuso da câmera lenta. Com isso, repetindo mais uma vez, o filme ficou “apenas” uma história contada. Resta ver se os dois filmes seguintes corrigirão esses defeitos.

Faltaram ainda no filme músicas cantadas pelos personagens. No livro de Tolkien, vira e mexe os personagens, principalmente os hobbits, estão cantando. As músicas haviam sido prometidas aos fãs, mas isso Peter Jackson ficou devendo.

Elijah Wood como o personagem central Frodo também não convence muito. Ele está mais preocupado em arregalar seus olhos azuis e em mostrar a face rosada de seu personagem que em desenvolver um personagem que combina companheirismo com inteligência e coragem. Já Ian Mckellen como Gandalf está ótimo, combinando o  humor variável e a presença de seu personagem. Christopher Lee como Saruman convence, e é no encontro entre os personagens de ambos um dos momentos mais empolgante do filme.

Por fim, o final do filme termina sendo retrato daquilo que lhe faltou. Ao terminar de ler o volume “A Sociedade do Anel”, o leitor logo se dirige para o segundo volume, de maneira que o final quebrado passa a fazer sentido. Já com o filme não: os espectadores terão de esperar até o Natal de 2002 para conferir a continuação da saga. Era esse final mais uma coisa que o diretor Peter Jackson deveria ter alterado. Mas ele não o fez. E seu filme, que poderia ser o filme de toda uma geração, careceu de momentos mágicos por ter suas melhores partes muito diluídas. O conjunto, em si, não se sustenta tanto.


Assistido em 06/01/2001, no Cinema Colossal I.

You May Also Like

0 comentários