Uma pequena reflexão chamada "O Amor no Cinema"


O AMOR NO CINEMA


Neste texto trataremos sobre como alguns filmes nos mostram o amor no seu entendimento mais belo, direcionado a qualquer coisa: às palavras e ao conhecimento, a um filho, um amigo, um animal de estimação, etc. Quando escolhemos como tópico deste texto “O Amor no Cinema”, não tivemos a intenção de tratar de filmes com romances, como o leitor pode pensar à primeira vista. Numa lista de filmes assim, com certeza não nos esqueceríamos de Casablanca ou O Paciente Inglês, ou outros grandes filmes que nos contam lindas histórias de amor e luta. Aqui, a questão é outra que não o conceito popular de amor como um romance ligando um homem a sua mulher, e menos ainda a ligação que as pessoas normalmente fazem de que um homem é romântico porque presenteia a namorada com bombons e flores. Sentir amor não se confunde nem um pouco com ser romântico. Trataremos aqui é do amor no sentido mais puro de seu termo.

Com o amor, nasce a redenção, para quem ama; as demais pessoas, porém, quando vêem a situação gerada pelo amor não costumam na maioria das vezes entendê-la, tendo a sensação de que se trata de uma loucura ou de um ato de alguém ou desesperado, ou mesmo nojento, ou qualquer outra coisa... porque o amor só o é para quem sente. Antes de mais nada amar não vê defeitos. É contraditório você dizer que ama alguém, apesar de todos os seus defeitos. Repetindo: amar não vê defeitos, não sente vergonha nem pudor. Amar é o desinteresse total (suas razões são desconhecidas), é a auto-suficiência, é o amar pelo amar. Por isso, é o mais puro de todos os sentimentos. É como estarmos em um outro mundo, independente da nossa realidade, das coisas que normalmente fazemos. Para explicarmos um pouco melhor e continuarmos a desenvolver o tema, selecionamos três filmes: O Destino, Dançando no Escuro e Bem-Amada.

É claro que transpor para um filme um sentimento tão forte não é tarefa fácil. O diretor tem de captar ao máximo a essência, e fazer com que cada movimento de câmera, cada grau de iluminação, cada figurino, enfim, cada toque do filme carregue a dedicação que caracteriza o amor.

O Destino (Al Massir), produção franco-egípcia do diretor egípcio Youssef Chahine, conta-nos a história do filósofo Averroès que, unindo idéias cristãs e clássicas com o Alcorão, passa a ser censurado e perseguido, na Espanha dominada pelos mouros. Mas, como o próprio Averroès escreveu, “as idéias têm asas. Nada pode detê-las”, encerrando o filme com um dos mais otimistas finais da história do cinema. O amor, aliás, é sempre otimista. Ele, em O Destino, dirige-se aos conhecimentos e sua transmissão às pessoas. A Averroès coube muito sofrimento: foi perseguido, teve discípulos mortos e livros queimados em praça pública. Mas o seu objeto de amor, no fim e com muita luta, foi salvo. Nada mais importaria, daí em diante. Seus inimigos podem queimar quantos livros seus quiserem,  expulsá-lo da cidade e confiscar seus bens, porque o vitorioso ainda será ele: a transmissão do conhecimento está garantida, suas obras estarão aguardando as gerações seguintes. O diretor conduziu a caminhada do filósofo de maneira apaixonante (um exemplo são os números musicais do filme) e Averroès foi vivido por um ator competentíssimo e também apaixonado.

A própria palavra Filosofia, que significa “amigo da sabedoria”, mostra-nos o desinteresse que o filósofo deve ter na busca pelo conhecimento. Ele simplesmente deve amar buscá-lo e transmití-lo, pois, como já escrevia Kant, é condição do homem necessitar transmitir seus pensamentos. E isso basta. Não é então sem razão que Amor e Amizade são duas palavras de mesmo radical.

Em Dançando no Escuro (Dancing in The Dark), do diretor dinamarquês Lars Von Trier, o amor vem de uma imigrante de um país comunista do leste europeu que, nos Estados Unidos, luta para que o filho não perca a visão, já que ele sofre da mesma doença genética que está fazendo com que ela vá perdendo a sua. Para a personagem Selma, vivida pela cantora Bjork (que surpreendentemente ganhou a Palma de Ouro de melhor atriz, em Cannes), basta isso: que seu filho não padeça do mesmo mal que ela. Os dois moram numa casinha alugada de um típico casal norte-americano. Ela guarda todo o dinheiro que recebe trabalhando numa fábrica para custear a operação de seu filho, até porque não sabe até quando será capaz de trabalhar. Não lhe importa o que aconteça, e nem o que tenha de suportar. Aí está a pureza do amor: ele não se mistura com “ses”, isto é, com condições e aparências, é algo que basta por si só e que quando vêm não tem, meus amigos, nada que o impeça. “Eles podem até pensar que esta foi a nossa última dança, mas ela só será enquanto quisermos”. O maior hobbie e paixão de Selma são os musicais, e eles funcionam como uma fuga de sua difícil realidade. O que é uma história muito triste é amenizada pelo amor que, como vimos, é sempre vitorioso, pelo simples fato de ser amor, e não outra coisa. Selma é, enfim, condenada à morte pela justiça americana, por matar ao proteger seu dinheiro, e está praticamente cega, mas sua preocupação continua sendo seu filho. E ela consegue, ao final, pagar pela operação. Para o amor, então, não interessa o que os outros pensem ou façam... o amor não pode ser destruído.

O modo de vida norte-americano, o chamado american way of life, tido como perfeito, na verdade não o é, porque é incapaz de reconhecer e proteger o amor verdadeiro. Os americanos vêem apenas aparências, e não se esforçam para aprofundar-se na essência das coisas, ainda mais quando se trata de estrangeiros. É a questão do preconceito e da ideologia de que o american way of life é o modelo ideal e por isso está num nível de proteção acima dos outros.

Bem-Amada (Beloved), filme do diretor Jonathan Demme (de Filadélfia e O Silêncio dos Inocentes), é, na minha opinião, o melhor exemplo dos três. Conta-nos a história de uma escrava que passa a ser assombrada pelo fantasma da filha, remetendo-nos ao mal da escravidão nos Estados Unidos do século passado. Sethe é a escrava, mãe de quatro filhos, que passou horrores numa fazenda chamada “Doce Lar”. Fugiu de lá para viver com a sogra e os filhos, aguardando o retorno do marido que nunca acontece. Ao ser encontrada pelos feitores, mata um de seus filhos e e por pouco não mata seus outros três, para que não sejam apanhados e venham passar o que ela passou como escrava — afinal, filhos de escravos são escravos. Existe exemplo melhor? Para muitos de nós o ato de matar o próprio filho é uma insanidade, uma barbaridade; para a personagem de Oprah Winfrey, muito passional, é amor e não outra coisa. É algo de que não há arrependimento, nem melancolia, pois o amor, sozinho, é capaz de transmitir uma gama de sentimentos e sensações que só quem ama pode saber como é. “Amai para entendê-las/pois só quem ama pode ter ouvido/ capaz de ouvir e escutar estrelas”. O fantasma da filha morta de Sethe reaparece anos depois, como uma moça com retardamento físico e mental, retrato do que lhe acontecera. E ainda assim sua mãe a aceita completamente, de braços abertos, não vendo nela qualquer defeito ou pudor. Ela a ama completamente, do jeito ou forma que ela se mostrar, ainda que de maneira sobrenatural.  É sua filha, ela mesma a matou, mas, por Deus, ela retornou. Nós percebemos então que o que Sethe havia feito (tentado matar os próprios filhos) fora um ato de amor, tamanho o amor que ela demonstra quando descobre que a moça é sua filha que retornara para o seu convívio, ainda que com as pesadas cicatrizes do que acontecera anos atrás. Mas a mãe não lhe vê qualquer defeito, como se eles fossem automaticamente ignorados, deixados de lado. O sistema escravista, os feitores de Sethe e as pessoas da cidade que a boicotam por ter matado a filha são absolutamente incapazes de reconhecer esse amor, conforme o filme nos mostra.

O título do filme, por tudo isso, é adequadíssimo. E tem mais: reforça a idéia de que uma história de amor somente pode ser trágica para os demais, porque para quem ama, o amor encerra todo o suficiente. E tem mais: o amor produz mais amor, porque cria uma ligação fortíssima entre duas pessoas.

Todos esses três filmes contém histórias sofridas, mas em O Destino o otimismo é contagiante e nos traz uma ótima sensação de leveza. Outra lição que podemos tirar da análise deles é que o amor pode ser perigoso, na medida em que dá infinita coragem e dedicação absoluta, inclusive para enfrentar os dententores do status quo. A relação entre quem ama e as demais pessoas tende a ser conflituosa, mas sempre existirão pessoas capazes de enxergar a beleza que existe em quem ama e, assim, poder ajudar. Nesses filmes são exemplos os seguidores de Averroès e a sua família, a amiga operária de Selma, interpretada por Catherine Deneuve, e, em Bem-Amada, sua filha Denver e a sogra Baby Sugs.

Todos os três filmes contam com belíssima fotografia e excelente elenco, feitos para tentar nos emergir nesse mundo, dominado por amor. A feitura de todo o filme tem de estar comprometida com o desinteresse, o que pode soar como contra-senso, mas na verdade o é apenas em termos. O desinteresse é justamente o fazer pelo fazer, gostar pelo gostar, enfim, o amar pelo amar — daí sua pureza. Disse que é um contra-senso em termos porque o comprometimento nos remete à espontaneidade, melhor dizendo, à honestidade, deixando com que o amor vá fluindo... E para que o amor possa ser bem retratado, precisa existir esse desapego com o lucro, ou com os Oscar da vida, ou com as superproduções e superlançamentos...
Quisemos demonstrar, no fim das contas, que os atos dos personagens desses filmes são atos de amor, e não de fanatismo, loucura ou desespero. O amor, inclusive, pode brotar das pessoas e coisas que menos esperamos. É a questão de termos sensibilidade para enxergar.

Esses três filmes comentados são, enfim, obras-primas. Mas temos tantos e tantos outros que mostram bem o sentimento amor, da maneira que tentei explicar. Um exemplo é A Menina e o Porquinho (Charlotte´s Web), desenho animado dos anos 70, da dupla William Hanna e Joseph Barbera. Assistá-lo serviria até com um teste para o leitor, para compará-lo com os outros filmes e com a conotação do amor dada neste texto. Outro filme é o recente Fale com Ela (Hable com Ella), do diretor espanhol Pedro Almodóvar, obra-prima na qual o amor mesmo não correspondido é capaz de feitos extraordinários e de, inclusive, gerar a partir dele uma nova ligação de amor. Pedro Almodóvar é refinado, sente as coisas e sabe passá-las como nenhum outro diretor.

Para encerrar, usaremos o discurso da personagem Baby Suggs, sogra da escrava Sethe, que é mais ou menos assim: “Sintam com o coração. Sigam o que vem dele. Não liguem para o que vocês vêem, para o que pegam, nem para o que sai do ventre de vocês. Usem o coração”. Isto é amor.


By Mathias Nelson Faria dos Reis, 2002.


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