Crítica de filme: O Leopardo
O
Leopardo (Il
Gattopardo). França / Itália, 1963. De Luchino Visconti. Com Burt Lancaster,
Alain Delon e Claudia Cardinale. Drama. 183 min.
Escrever
sobre O Leopardo não é tarefa fácil.
Muito já se escreveu sobre o filme. Ele foi tema de teses, dissertações, textos
acadêmicos, análises minuciosas de críticos de cinema, etc. Então, o que
escrever, de forma rápida e proveitosa a qualquer leitor, sobre um filme que é
“grande” em todos os sentidos?
Suntuoso,
requintado, são alguns dos adjetivos mais comumente associados ao filme.
Afinal, seu tema é a aristocracia italiana (mais precisamente a siciliana),
durante as guerras de unificação da Itália, em 1860. Burt Lancaster é o
príncipe Don Fabrizio Salina, um “leopardo”, a quem seu sobrinho Falconeri
adverte que “você precisa mudar, para que as coisas continuem como estão”. Como
“leopardo”, Don Fabrizio tem poder sobre as “ovelhas”, ou seja, o populacho, a
plebe, o campesinato siciliano. Nestes tempos de mudança, de “risorgimento”, ascende a burguesia, identificada pelo príncipe como “hienas”.
Don
Fabrizio é arguto, perspicaz e pragmático. A partir de sua visão, veremos as
transformações e as muitas permanências desse período histórico de unificação
da Itália, em que as coisas, ao mesmo tempo em que mudam – unificação, ascensão
da burguesia, sufrágio – permanecem as mesmas – classes privilegiadas que detém
o aparado estatal.
Don
Fabrizio tem consciência de que as transformações daquele período vieram para ficar, e
deve-se adaptar-se a elas para manter-se privilegiado, embora, de certas
coisas, um “leopardo” não possa abrir mão.
Como
membro da nobreza, o príncipe Salina possui sua riqueza baseada em terras, numa
Sicília atrasada e rural (“o luxo do meu palácio e a precariedade das estradas
da Sicília estão interligados” – diz ele algo parecido). Sua esposa deu-lhe
sete filhos, mas nunca prazer na cama, pois ele “sequer viu seu umbigo” pois
“em qualquer ocasião ela se põe a rezar”. O personagem transita entre o velho –
a Igreja Católica, a nobreza de sangue – e o novo. Estes últimos estão
representados na figura de seu sobrinho Tancredi Falconeri (Alain Delon), que
luta ao lado das tropas de Garibaldi pela unificação e pela república (e de
quem é a famosa frase), e por Don Calogero Sedara, burguês bom de negócios,
preparado para o poder nesses novos tempos, mas sem classe.
Falconeri
retorna das guerras de unificação com elevada patente na hierarquia militar,
mas, após a vitória, aceita a monarquia e defende que os anarquistas – muitos
dos quais colegas de batalha – sejam presos ou executados, por serem
baderneiros e gente difícil de lidar. Ele pertence a um grupo de republicanos
vermelhos, de origem aristocrática, que havia pegado em armas por uma Itália
unida e moderna, que quer a modernidade, mas não abre mão de privilégios e luxo.
É aquela velha história: sou liberal, mas nem tanto...
Interessante
que, no começo da película, há cenas de batalha, de desordem: ocorre a saída de
uma classe dominante para a entrada de outra (ou de outra forma de dominação,
se assim preferir). É a guerra de unificação, em que os Reinos de Nápoles e Das
Duas Sicílias – da qual Don Fabrizio é príncipe – perdem sua soberania e são
incorporados a uma Itália unida. Nesse contexto, Don Fabrizio aceita o apoio
dos republicanos para escolta-lo com sua família até as férias em uma
cidadezinha. Tirando essas cenas do começo, toda a ação do filme se passa em
bailes e jantares da nobreza, em grandes salões e grandes palácios. Sem dúvida,
é nesse ambiente de bailes e banquetes em que Visconti transita melhor e se
sente mais à vontade. Passa de forma magistral sua mensagem, com ótimos
enquadramentos e movimentos de câmera e excelente uso da trilha sonora, composta
por Nino Rota.
Luchino
Visconti desloca a câmera de modo a permitir ao espectador perceber tudo o que
acontece nos palácios. Planos largos permitem ver, uma dama, num canto,
conversando animadamente; em outro momento, o espectador pode entrever-se com
empregados em seu ofício de servir bebidas e nobres comportando-se à mesa e
interagindo uns com os outros. A câmera perpassa o ambiente e o perfeccionismo e
a preocupação de Visconti com os detalhes ficam mais evidentes.
Seus
enquadramentos são como molduras, que emolduram como se o filme fosse uma
pintura realista, em que podemos nos deter durante bastante tempo e olhar o que
acontece num lado, o que acontece no outro, por exemplo. Nesse “emolduramento,
não há um foco de luz forte em determinado personagem ou objeto e o ritmo do filme
e dos movimentos de câmera dão tempo para apreciarmos os detalhes.
Ao
mesmo tempo em que percebe que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”,
Don Fabrizio toma consciência da passagem do tempo e da finitude da vida. Isso
é algo que aproxima, segundo muitos críticos, o personagem do diretor Visconti:
este também veio de uma classe privilegiada.
O
elenco é de peso. Burt Lancaster é gigante no papel principal, Cláudia
Cardinale está no auge da beleza e faz par romântico com Alain Delon. Há ainda
as presenças de Paolo Stoppa, Terence Hill e Giulianno Gemma. A trilha sonora
de Nino Rota é perfeita: às vezes épica, às vezes valsa, às vezes
pitoresca, como na recepção da família de Don Fabrizio na cidadezinha de
Donnafugata.
Visconti,
assim, pinta um retrato da aristocracia, e faz uma espécie de micro-história: a
partir de um indivíduo, passa um painel do macro, da sociedade. Foca muito nos
costumes, no dia a dia, e não em grandes eventos. Vale lembrar que o filme é
baseado no livro homônimo de Tommasi di Lampedusa (1896-1957), um retrato da
aristocracia em seu outono, mas coube a Luchino Visconti imortaliza-lo na tela
grande.
Cotação:
Segue
uma amostra da trilha sonora do filme, composta por Nino Rota:
A
chegada da família do príncipe à cidadezinha de Donnafugata, com direito a
banda de música da cidade:
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